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Citações - Português

Quando mais Ele nos preocupa, mais perdemos nossa inocência. No paraíso ninguém se preocupava com ele. Foi somente a queda que fez nascer esta estranha curiosidade. Sem a falta, não há consciência da existência divina. Daí que raramente encontremos Deus nas consciências que ignoram os tormentos do pecado. Se o contato com Deus anula nossa inocência, é também porque ocupando-nos Dele, nos misturamos em seus assuntos. “Aquele que vir a Deus morrerá”. As vastidões infernais da divindade, turbadoras como um vício.
- Lacrimi şi Sfinţi

A teologia é a morte de Deus. Que idéia despropositada buscar argumentos para provar sua existência! Todos esses Tratados não valem mais que uma exclamação de Santa Teresa. Desde que a teologia existe, nenhuma consciência ganhou com ela uma certeza a mais, pois a teologia não é senão a versão atéia da fé. O último balbucio místico está mais próximo de Deus que a Suma Teológica. Tudo o que é instituição e teoria deixa de estar vivo. A Igreja e a teologia asseguraram a Deus uma agonia durável. Apenas a mística o reanima de tempos em tempos.
- Lacrimi şi Sfinţi

O destino histórico do homem é levar a idéia de Deus até o seu final. Havendo esgotado todas as possibilidades da experiência divina, experimentado Deus sob todas suas formas, chegaremos fatalmente à saciedade e ao asco, após o que respiraremos livremente. Há, entretanto, no combate contra um Deus que encontrou seu último refúgio em certos recônditos de nossa alma, uma doença indefinível, doença nascida de nosso medo de perdê-Lo. Como se alimentar de seus últimos restos, como poder gozar com toda tranqüilidade da liberdade consecutiva à sua liquidação?
- Lacrimi şi Sfinţi

Em todo homem dorme um profeta, e quando ele acorda, há um pouco mais de mal no mundo... A loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge de profundidades desconhecidas ao instinto de preservação. Cada um espera seu momento para propor algo: não importa o quê. Tem uma voz: isto basta. Pagamos caros não ser surdos nem mudos...
- Breviário de Decomposição

O homem só engendra se permanece fiel ao destino geral. Se se aproxima da essência do demônio ou do anjo, torna-se estéril ou procria abortos.
- Breviário de Decomposição

A vida tem dogmas mais imutáveis que a teologia, pois cada existência está ancorada em infalibilidades que fazem empalidecer as elucubrações da demência ou da fé. O cético mesmo, apaixonado por suas dúvidas, mostra-se fanático pelo ceticismo. O homem é o ser dogmático por excelência; e seus dogmas são tanto mais profundos quando não os formula, quando os ignora e os segue.
- Breviário de Decomposição

O universo transformado em tarde de domingo... é a definição do ennui – e o fim do universo... Retire a maldição suspensa sobre a História e esta desaparece imediatamente, assim como a existência, na vacância absoluta, revela sua ficção. O trabalho construído do nada forja e consolida os mitos; embriaguez elementar, excita e cultiva a crença na “realidade”; mas a contemplação da pura existência, contemplação independente de gestos e de objetos, só assimila o que não é...
- Breviário de Decomposição

A preguiça é um ceticismo fisiológico, a dúvida da carne.
- Breviário de Decomposição

Quem quer perpetuar-se a todo custo mal se distingue do cão: ainda é natureza; não compreenderá jamais que se possa sofrer o império dos instintos e rebelar-se contra eles, gozar das vantagens da espécie e desprezá-las: um fim de raça – com apetites.
- Breviário de Decomposição

Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados, mas quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incurável.
- Breviário de Decomposição

Quem, e por que desafio, poderia desafiar a existência impunemente? Quem, e com que esforços, poderia atingir uma liquidação do princípio mesmo de sua própria respiração? Entretanto, a vontade de minar o fundamento de tudo o que existe produz um desejo de eficácia negativa, poderoso e inapreensível como uma gota de remorso corrompendo a jovem vitalidade de uma esperança...
- Breviário de Decomposição

A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.
- Breviário de Decomposição

Como execro, senhor, a torpeza de tua obra e essas larvas viscosas que te incensam e se assemelham a ti! Ao odiar-te, escapei das guloseimas de teu reino, das sandices de teus fantoches. És o extintor de nossas chamas e de nossas rebeldias, o bombeiro de nossos ardores, o repressor de nossos vícios. Antes mesmo de haver-te relegado a simples fórmula, pisoteei teus arcanos, desprezei tuas artimanhas e todos esses artifícios que te compõem uma toalete de Inexplicável.
- Breviário de Decomposição

O tédio é o eco em nós do tempo que se dilacera..., a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que sustenta – ou inventa – a vida..
- Breviário de Decomposição

Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se – na falta de outro interlocutor – Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e... tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé.
- Breviário de Decomposição

O cadáver que se endominga já não se reconhece e, imaginando a eternidade, apropria-se da ilusão. A carne cobre o esqueleto, a roupa cobre a carne: subterfúgios da natureza e do homem, trapaças instintivas e convencionais: um senhor não pode estar cheio de lama nem de poeira... Dignidade, honorabilidade, decência – tantas fugas ante o irremediável. E quando você coloca chapéu, quem diria que residiu em entranhas ou que os vermes se banquetearão com sua gordura?
- Breviário de Decomposição

A miséria da expressão, que é a miséria do espírito, manifesta-se na indigência das palavras, em seu esgotamento e sua degradação: os atributos graças aos quais determinamos as coisas e as sensações jazem finalmente diante de nós como carcaças verbais. E dirigimos olhares cheios de nostalgia ao tempo em que só exalavam um odor de mofo. Todo alexandrinismo provém inicialmente da necessidade de arejar as palavras, de acrescentar a seu fenecer o suplemento de um refinamento alerta; mas acabam em uma lassidão onde o espírito e o verbo se confundem e se decompõem... Queremos, à força, ver o fundo das palavras? Não se vê nada, pois este, separado da alma expansiva e fértil, é vazio e nulo. O poder da inteligência exercita-se em projetar sobre ele um brilho, em poli-lo e torná-lo deslumbrante; este poder, erigido em sistema, chama-se cultura – fogo de artifício em um cenário de nada.
- Breviário de Decomposição

Não há salvação possível fora da imitação do silêncio. Mas nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozóides verbosos, estamos quimicamente ligados à Palavra.
- Silogismos da Amargura

Neste “grande dormitório”, como um texto taoísta chama o universo, o pesadelo é única forma de lucidez.
- Silogismos da Amargura

Se acreditamos com tanta ingenuidade nas idéias é porque esquecemos que elas foram concebidas por mamíferos.
- Silogismos da Amargura
Uma moda filosófica se impõe como uma moda gastronômica: refuta-se igualmente uma idéia e um molho.
- Silogismos da Amargura

Todo ocidental atormentado faz pensar em um herói de Dostoiévski que tivesse uma conta no banco.
- Silogismos da Amargura

Nesse universo provisório, nossos axiomas só têm um valor de notícias do dia.
- Silogismos da Amargura
Objeção contra a ciência: este mundo não vale a pena ser conhecido.
- Silogismos da Amargura

Cada vez que temos uma idéia, algo apodrece em nós.
- Silogismos da Amargura
Ter dedicado à idéia da morte todas as horas que uma profissão teria exigido... Os extravasamentos metafísicos são próprios dos monges, dos libertinos e dos mendigos. Um emprego teria feito do próprio Buda um simples descontente.
- Silogismos da Amargura
Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia.
- Silogismos da Amargura

O que arruína a alegria é sua falta de rigor; contemple, por outro lado, a lógica do fel...
- Silogismos da Amargura

Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo.
- Silogismos da Amargura
Só vivo por que posso morrer quando quiser: sem a idéia do suicídio já teria me matado há muito tempo.
- Silogismos da Amargura

Realizar uma experiência essencial, emancipar-se das aparências, não requer, em absoluto, colocar-se grandes problemas; qualquer um pode dissertar sobre Deus ou alcançar um brilho metafísico. As leituras, a conversação, a ociosidade, podem prover isso. Nada mais comum que o falso inquieto, pois tudo se aprende, inclusive a inquietude.
- La Tentation d’Exister

Para crer na realidade da salvação, é necessário crer primeiro na realidade da queda: todo ato religioso começa pela percepção do inferno – matéria-prima da fé; o céu, por sua vez, só vem depois, a título de corretivo e de consolação: um luxo, uma estupefação, um acidente exigido por nosso gosto de equilíbrio e de simetria. Apenas o Diabo é necessário. A religião que o dispensa se enfraquece, se esteriliza, torna-se piedade difusa e razoável. Aquele que busca a todo custo a salvação jamais fará uma grande carreira religiosa.
- La Tentation d’Exister

Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceitá-los, é preciso saber renunciar, violentar-se, agir contra sua própria natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo: ao próximo só a concedemos a duras penas; daí a precariedade do liberalismo, desafio a nossos instintos, êxito breve e miraculoso, estado de exceção oposto a nossos imperativos profundos... Função de um ardor extinto, de um desequilíbrio, não por excesso, mas por falta de energia, a tolerância não pode seduzir os jovens... Dê aos jovens a esperança ou a ocasião de um massacre e eles lhe seguirão cegamente.
- História e Utopia

O burguês não crê em nada, é um fato; mas é esse, se pode-se dizer, o lado positivo de seu vazio, já que a liberdade só pode manifestar-se no vazio de crenças, na ausência de axiomas, e só aí onde as leis não têm mais autoridade que uma hipótese. Se me dissessem que o burguês crê, entretanto, em algo, pois o dinheiro desempenha para ele a função de um dogma, eu replicaria que esse dogma, o mais terrível de todos, é, por estranho que pareça, o mais suportável para o espírito. Perdoamos aos outros suas riquezas se, em troca, nos deixam a liberdade de poder morrer de fome a nosso modo.
- História e Utopia

No curso dos tempos, a liberdade ocupa tantos instantes quanto o êxtase na vida de um místico. Ela nos escapa no momento mesmo em que tentamos apreendê-la e formulá-la: ninguém pode desfrutar dela sem tremor. Desesperadamente mortal, desde que se instaura postula sua ausência de futuro e trabalha, com todas suas forças minadas, para sua negação e sua agonia. Não há algo de perverso em nosso amor por ela?
- História e Utopia

[O ocidente] Que maldição o atingiu para que, ao final de seu desenvolvimento, só tenha produzido esses homens de negócios, esses comerciantes, esses trapaceiros de olhar nulo e sorriso atrofiado que se encontram por toda parte, tanto na Itália quanto na França, tanto na Inglaterra quanto na Alemanha? É essa gentalha o resultado de uma civilização o resultado de uma civilização tão delicada, tão complexa? Talvez seja preciso passar por isso, pela abjeção, para poder imaginar um outro gênero de homens.
- História e Utopia

Visceralmente inclinados à estruturação de sistemas, nós os construímos sem descanso, sobretudo em política, domínio de pseudoproblemas, onde se dilata o mau filósofo que reside em cada um de nós, domínio do qual gostaria de afastar-me por uma razão banal, uma evidência que aparece aos meus olhos como uma revelação: a política gira unicamente em torno do homem.
- História e Utopia

Agarrado a idéias momentâneas e a simulacros de sonhos, reflito por acidente ou por histeria e não por prurido de rigor, e me vejo, no meio dos civilizados, como um intruso, um troglodita apaixonado pela caducidade, mergulhado em preces subversivas, vítima de um pânico que não emana de uma visão de mundo, mas das crispações da carne e das trevas do sangue.
- História e Utopia

Ao divinizar a história para desacreditar Deus, o marxismo só conseguiu tornar Deus mais estranho e mais obsedante. Pode-se sufocar tudo no homem, salvo a necessidade de absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, e mesmo ao desaparecimento da religião sobre a terra.
- História e Utopia

Felizmente para nós, o tempo não esgota nossa substância. O indestrutível, o alhures, é concebível: em nós? Fora de nós? Como sabê-lo? No ponto em que as coisas se encontram, só merecem interesse as questões de estratégia e de metafísica, aquelas que nos fixam na história e as que nos afastam dela: a atualidade e o absoluto, os jornais e os Evangelhos...
- História e Utopia

A julgar pelos tiranos que produziu, nossa época terá sido tudo, menos medíocre. Para encontrar tiranos similares, seria preciso remontar ao Império romano ou às invasões mongólicas. Bem mais do que a Stálin, é a Hitler que cabe o mérito de haver dado a tônica do século. Ele é importante, menos por si mesmo do que pelo que anuncia, esboço de nosso futuro, arauto de um sombrio advento e de uma histeria cósmica, precursor desse déspota em escala continental que conseguirá a unificação do mundo pela ciência, destinada não a libertar-nos, mas a escravizar-nos. Isto, que já se soube anteriormente, se saberá de novo algum dia.
- História e Utopia

Nascemos para existir, não para conhecer; para ser, não para afirmar-nos. O saber, tendo irritado e estimulado nosso apetite de poder, nos conduzirá inexoravelmente a nossa perdição. O Gênese percebeu, melhor que nossos sonhos e sistemas, nossa condição humana.
- História e Utopia

A história, espaço onde realizamos o contrário de nossas aspirações, onde as desfiguramos sem cessar, não é, evidentemente, de essência angélica. Ao considerá-la, só concebemos um desejo: promover a agrura à dignidade de uma gnose.
- História e Utopia

Não vingar-se é submeter-se à idéia de perdão, é afundar-se nela, é tornar-se impuro por causa do ódio que se sufoca dentro de si. O inimigo poupado nos obseda e nos perturba, sobretudo quando decidimos não detestá-lo. De toda maneira, só o perdoamos de verdade se contribuímos para sua queda, ou a assistimos, se ele nos oferece o espetáculo de um fim desonroso, ou se, suprema reconciliação, contemplamos seu cadáver. Felicidade rara, é verdade, e mais vale não contar com ela. Pois o inimigo nunca está por terra, sempre se encontra de pé e triunfante. Sua primeira qualidade é erguer-se diante de nós e opor a nossas tímidas chacotas seu sarcasmo escancarado.
- História e Utopia

Conhecer a nós mesmos é identificar o motivo sórdido de nossos gestos, o inconfessável inscrito em nossa substância, a soma de misérias patentes ou clandestinas das quais depende nossa eficácia. Tudo o que emana das zonas inferiores de nossa natureza está investido de força, tudo o que vem de baixo estimula: produzimos e rendemos mais por inveja e rapacidade do que por nobreza e desinteresse.
- História e Utopia

O que é certo é que o princípio de expansão, imanente à nossa natureza, nos faz olhar os méritos dos outros como uma usurpação dos nossos, como uma contínua provocação. Se a glória nos é vedada, ou inacessível, acusamos aqueles que a alcançaram porque pensamos que a obtiveram nos roubando: ela nos cabia de direito, nos pertencia, e sem as maquinações desses usurpadores teria sido nossa. “Bem mais que a propriedade, é a glória que é um roubo”, ladainha do amargurado e, até certo ponto, de todos nós.
- História e Utopia

A capacidade de desistir constitui o único critério do progresso espiritual: não é quando as coisas nos abandonam, mas quando nós as abandonamos que atingimos a nudez interior, esse extremo em que já não pertencemos mais nem ao mundo nem a nós mesmos, extremo no qual vitória significa demitir-se, renunciar com serenidade, sem remorsos e, sobretudo, sem melancolia; pois a melancolia, por discretas e etéreas que sejam suas aparências, implica ainda ressentimento; é um devaneio carregado de agrura, uma inveja disfarçada de languidez, um rancor vaporoso.
- História e Utopia

Ao abolir o irracional e o irreparável, a utopia se opõe também à tragédia, paroxismo e quintessência da história. Qualquer conflito desapareceria em uma cidade perfeita; as vontades seriam estranguladas, apaziguadas e milagrosamente convergentes; reinaria somente a unidade, sem o ingrediente do acaso ou da contradição. A utopia é uma mistura de racionalismo pueril e de angelismo secularizado.
- História e Utopia

Um grande passo a frente foi dado no dia em que os homens compreenderam que, para melhor poder atormentar-se uns aos outros, era preciso reunir-se, organizar-se em sociedade. Segundo as utopias, eles só o conseguiram parcialmente; por isso elas se propõem a ajudá-los, a oferecer-lhes um cenário apropriado ao exercício de uma felicidade completa, exigindo, em contrapartida, que abdiquem de sua liberdade, ou, se a conservam, que a utilizem unicamente para clamar sua alegria em meio aos sofrimentos que se infligem sem cessar. Tal parece ser o sentido da solicitude infernal que têm em relação aos homens. Nessas condições, como não imaginar uma utopia às avessas, uma liquidação do bem ínfimo e do mal imenso vinculados à existência de qualquer ordem social?
- História e Utopia

Não há forma social nova que seja capaz de salvaguardar as vantagens da antiga: uma soma mais ou menos igual de inconvenientes se encontra em todos os tipos de sociedade. Equilíbrio maldito, estagnação sem remédio, de que sofrem igualmente os indivíduos e as coletividades. As teorias não podem fazer nada, já que o fundo da história é impermeável às doutrinas que marcam sua aparência. A era cristã foi algo muito diferente do cristianismo; a era comunista, por sua vez, não saberia evocar o comunismo enquanto tal.
- História e Utopia

Aquele que [...] vive na embriaguez da decepção [...] sabe, para sua desgraça, que a justiça é uma impossibilidade material, um grandioso contra-senso, o único ideal do qual é possível afirmar com certeza que não se realizará jamais, e contra o qual a natureza e a sociedade parecem haver mobilizado todas as suas leis.
- História e Utopia

A injunção criminal do Gênese, “crescei e multiplicai-vos”, não poderia ter saído da boca de um deus bom. “Sejai escassos” deveria ter sugerido ao invés disso, caso tivesse tido voz no capítulo. Tampouco poderia ter acrescentado as palavras funestas: “e enchei a terra”. Dever-se-ia, antes de mais nada, apagá-las para lavar a Bíblia da vergonha de tê-las acolhido.
- Le Mauvais Demiurge

Ter cometido todos os crimes exceto aquele de ser pai.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Não são os meus começos, mas o começo que me importa. Se esbarro no meu nascimento, em uma obsessão menor, é porque não consigo ir de encontro ao primeiro momento do tempo. Todo mal-estar individual remonta, em última instância, a um mal-estar cosmogônico, cada uma de nossas sensações expiando a perversidade da sensação primordial, pela qual o Ser escapou para fora de não se sabe onde...
- De l’Inconvenient d’Être Né

Sem a idéia de um universo fracassado, o espetáculo da injustiça sob todos os regimes conduziria até mesmo um abúlico à camisa-de-força.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Se todo mundo “compreendesse”, a história teria terminado há muito tempo. Mas estamos fundamentalmente, biologicamente inaptos a “compreender.” E mesmo se todas as pessoas compreendessem salvo uma, a história se perpetuaria em função dela, em função de sua cegueira. Em função de uma única ilusão!
- De l’Inconvenient d’Être Né

“Você errou em contar comigo.” Quem pode falar assim? Deus e o Fracassado.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Um momento sequer em que eu não estive consciente de esta fora do Paraíso.
- De l’Inconvenient d’Être Né

O homem começou com o pé errado. A desventura no paraíso foi a primeira conseqüência disso. O resto viria logo em seguida.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Aquele que se odeia não é humilde.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Muito mais do que o espinho, a consciência é o punhal na carne.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Impossível imaginar um animal degradado, um sub-animal.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Ser objetivo é tratar o outro como objeto, como um cadáver, é se comportar como um coveiro.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Aristóteles, Tomás de Aquino, Hegel – três escravizadores do espírito. A pior forma de despotismo é o sistema, em filosofia e em tudo.
- De l’Inconvenient d’Être Né

Toda minha vida, tive o sentimento de estar distante de meu verdadeiro lugar. Se a expressão “exílio metafísico” não tivesse nenhum significado, minha existência sozinha forneceria um a ela.
- De l’Inconvenient d’Être Né

“Que é a verdade?” é uma pergunta fundamental, mas nada ao lado de: “como suportar a vida?”, questão que por sua vez empalidece perto desta outra: “como se suportar?” – eis o problema capital para o qual ninguém está à altura de nos dar uma resposta.
- Écartèlement

A filosofia hindu persegue a liberação; a grega, à exceção de Pirro, Epicuro e alguns outros inclassificáveis, é decepcionante: não busca mais que... a verdade.
- Aveux et Anathèmes

Faço pouco caso de quem quer que despreze o Pecado original. Quanto a mim, recorro a ele em todas as circunstâncias e, sem ele, não vejo como poderia evitar uma consternação ininterrupta.
- Aveux et Anathèmes

Sendo o gosto pelo mal inato, não temos nenhuma necessidade de esforçar-nos para adquiri-lo. Com que habilidade as crianças exercem logo cedo seus instintos malvados, com que competência, com que fúria! Uma pedagogia digna desse nome deveria prever cursos de camisa-de-força. Para além da infância talvez fosse necessário estender esta medida todas as idades, para o bem da comunidade.
- Aveux et Anathèmes

A tirania destrói ou fortalece o indivíduo; a liberdade o amolece e o transforma em um fantoche. O homem tem mais chances de se salvar pelo inferno que pelo paraíso.
- Aveux et Anathèmes

O patrimônio que mais nos pertence: as horas em que não fizemos nada.... São elas que nos formam, que nos individualizam, que nos tornam dessemelhantes.
- Aveux et Anathèmes

Se fosse possível identificar o defeito de fabricação cujas marcas este universo traz tão visivelmente!
- Aveux et Anathèmes

Quanto deviam se detestar os trogloditas na obscuridade e na pestilência das cavernas! Compreende-se que os pintores que nelas habitavam não tenham querido eternizar a figura de seus semelhantes e tenham preferido a dos animais.
- Aveux et Anathèmes

Podemos obter quase tudo, salvo o que desejamos em segredo. É sem dúvida justo que o que mais nos interessa permaneça inalcançável, que o essencial de nós mesmos e de nosso percurso permaneça escondido e irrealizado. A Providência fez bem as coisas: que cada um tire proveito e se orgulhe do prestígio ligados às derrotas íntimas.
- Aveux et Anathèmes